R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

por Jorge Candeias

conto publicado em 28.11.2001

republicado em 28.12.2003

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Desapareceu de sua casa na ilha espanhola de Lanzarote, Canárias, o escritor português José Saramago. O laureado com o prémio Nobel terá sido visto pela última vez por um estafeta de uma loja local, que teria ido entregar víveres a sua casa ao princípio da tarde de anteontem, dia 21. A esposa do escritor encontra-se em viagem e é esperada em Lanzarote apenas dentro de uma semana. Segundo informações da editora, Saramago preparava-se para publicar o oitavo volume dos "Cadernos de Lanzarote". A polícia não fornece quaisquer esclarecimentos sobre o caso e a casa do escritor encontra-se inacessível à comunicação social.
Conseguimos no entanto apurar que o desaparecimento, denunciado à polícia espanhola por alguns amigos que teriam um encontro combinado com o escritor em Haría, pequena localidade do norte da ilha de Lanzarote, se reveste de aspectos misteriosos e até mesmo bizarros. De facto, apesar de não haver quaisquer sinais de roubo ou violência, desapareceram vários objectos pessoais, incluindo roupas, o computador que o escritor utiliza para escrever, e vários outros objectos da predilecção de Saramago, como se este se tivesse preparado para uma longa viagem. Para adensar o mistério, encontrou-se sobre a mesa de trabalho do escritor um breve manuscrito fantástico, ao qual tivemos acesso, e que transcrevemos de seguida:
 
De que vale uma vida sem mistérios? Dou por mim a brincar insistentemente com tal pensamento enquanto outra parte do meu cérebro revive a minha saída desta Terra que me acolhe como um útero desde há tantos anos que já se tornaram difíceis de contar. Talvez por a minha vida não ter mistérios para mim, a dediquei a inventá-los para os outros e se for esse o caso, que farei eu dos anos que me restam? Ou antes, que poderei fazer deles, agora que esta velha vida que é a minha vestiu um manto de mistério que nem outra vida igual a esta me permitiria deslindar?
Os críticos ao que escrevo dizem que sou demasiado intrincado, que perco a objectividade do que quero dizer nas muitas palavras com que o digo e nas voltas, recuos e torneios com que levo as minhas frases ao seu destino. Talvez seja assim, embora a mim tudo me pareça claro. Mas se for assim, será este texto incompreendido? Terei de forçar-me a um estilo jornalístico para que não confundam o que quero dizer com o que não quero? Já lhe perdi o jeito, ao estilo jornalístico, se é que alguma vez o tive, mas talvez tenha de tentar, pelo menos. Porque o que tenho para dizer é demasiadamente importante para que não me compreendam, será mesmo a coisa mais importante que alguma vez disse ou direi, ou até a única coisa na verdade importante que deixarei aos meus semelhantes.
Penso que tudo tenha começado quando quis lançar os olhos do mundo para os seus deserdados, aproveitando os cinco minutos de fama que o Nobel me deu. De algum modo que nem me atrevo a tentar compreender, as minhas palavras terão chegado mais longe que eu alguma vez poderia supor. Ou pelo menos assim penso, porque nada me foi dito directamente, foram-me apenas mostradas maravilhas e terrores e foi-me feito um pedido silencioso para que retirasse delas e deles as minhas próprias conclusões.
Seja como for, o facto é que há cerca de seis meses, tempo contado através dos ciclos de sono e vigília que atravessei, ou ontem, a acreditar na data que diz o calendário que tenho na minha frente, fui levado por uns seres que me parece já ter visto em sonhos, meus ou de algum outro sonhador, para um objecto quase abstracto, de tão bizarra a sua forma, ou falta de forma, que aquilo não se enquadrava em nada que fizesse parte da experiência dos homens. Não era forme, portanto, mas também não era informe, porque parecia ter uma estrutura lógica qualquer. Era algo construído com um objectivo, não uma jangada de pedras que se juntassem por acaso para seguir à deriva pelas correntes do que fosse que lhe servisse de suporte. No interior reinava a mesma ambiguidade, e além da falta de uma forma com propósito evidente, embora eu não pudesse saber que propósito seria esse, havia coisas bidimensionais, nem propriamente pintura, nem talvez caligrafia, e nada que se assemelhasse a um manual para me ajudar a enquadrar tudo aquilo num todo uno e real.
Será escusado dizer que neste ponto comecei a duvidar da minha sanidade mental, e devo admitir que ainda hoje passado tanto tempo e tantas coisas (e não me consigo convencer de que o que estou a descrever se passou ontem apenas) alguma dúvida ainda persiste no meu espírito sobre o seu estado real. Estranha mania esta que a mente tem se reflectir sobre si mesma. Mas não posso deixá-la dispersar-se em filosofias que neste momento são espúrias, nem posso partir do princípio de que enlouqueci. Eles não mo perdoariam, e talvez nem eu mesmo me perdoasse.
Nem dei porque aquilo se levantasse do chão, mas quando os meus captores (e chamo-lhes captores à falta de um termo melhor, pois violência não havia de todo e em vez disso aqueles seres estavam envoltos numa aura de benignidade que não se mostrava, mas que se via) me levaram para uma sala (e deparo-me aqui mais uma vez com dificuldades na linguagem, pois aquilo não era uma sala das que todos conhecemos da nossa vida quotidiana. Mas decidi que devia sacrificar a realidade à clareza desde que a verdade não sofra com isso, e se nada foge à verdade mais profunda se se chamar sala ao que não o é na realidade objectiva das coisas, seja então isso uma sala) com vista para o exterior, pude ver uma coisa redonda e azul na minha frente, uma jóia a que os homens de todos os povos chamam Terra. Mas vi-a como a vira antes bastantes vezes em fotografias e pinturas, não como a vi toda a vida, em fragmentos minúsculos, do nível do chão. Acreditar-me-ão certamente se vos disser que não posso imaginar que até ao ano da minha morte volte a ver algo que me impressione tanto...
Desculpem-me. Vieram chamar-me, querem partir. Sinto-me como uma criança numa loja de doces, com os pais já à porta a chamá-la. Quero deixar este relato para trás, concluído, mas temo ter-me perdido em divagações não fundamentais. Concluamos brevemente então, que tudo indica que terei mais tarde muito tempo para descrever mais pormenorizadamente tudo aquilo por que passei.

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Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

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