R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Sally

por Jorge Candeias

uma crítica de Octávio Aragão

publicada em 30.12.2003

Charme Hipodérmico

Da primeira vez que li Sally, de Jorge Candeias, imaginei Randolph Scott, introspectivo, alto como um poste, encostado num balcão de saloon à espera de uma corista ou um colt 45, mas vestindo um jaleco branco, como um médico de comercial de TV, exalando respeitabilidade. Foi a mescla de boas e más impressões originárias dessa imagem que me fez ter sentimentos dúbios em relação à noveleta vencedora da menção honrosa no Prêmio Revelação Manuel Teixeira Gomes, em 2001.
De positivo temos a força icônica de Alberto, o protagonista altivo e inseguro que se torna refém de sua amnésia. Acrescente-se a isso a prosa bem construída, os diálogos fluídos que deixam a cacofonia de fora, e tem-se um texto de alto nível que desperta a curiosidade a cada página, mesclando o melhor da literatura mainstream e o incessante gorgolejar do pulp. Sally é a esfinge que se mantém fora de nosso campo de visão, onipresença luminosa, forçando-nos a apertar os olhos junto com o herói, sem nunca encontrar o foco. É essa personagem esfumaçada, que anseia por perguntas sem jamais formular respostas, quem finca as garras no leitor e vira as 38 páginas em busca da definição.
E o problema, o não tão positivo, é exatamente esse... quando chega, a definição é uma amarra. Seria melhor parar antes, deixar-nos com gosto de "hã?".
Três páginas a menos fariam de Sally uma obra maior. A prosa de Candeias transcende, mas sua necesidade de obedecer a cânones narrativos questionáveis quase transforma a noveleta em uma receita de bolo, onde a solução proposta pelo autor deixa pouco espaço para os devaneios do público.
Sim, queremos ser enganados. Somos um tipo curioso de animal, que busca resoluções concretas, mas que entristece diante do esperado, do conhecido. Relendo o livro, percebe-se que Candeias nos oferece algumas possibilidades de desenlace para a perseguição onírica que envolve vários aspectos de Alberto e Sally, caçada essa propositadamente inserida num ambiente clichê de faroeste hollywoodiano, que tanto ajuda como compromete nossa imaginação. Infelizmente, quando o filme de caubóis começa a ficar interessante, com a libido a infiltar-se em gotas cada vez mais perceptíveis por entre as anáguas hipotéticas de Sally e as ceroulas de Al, surge uma espetadela hipodérmica que elimina o charme até então crescente. Nada mais broxante que um ambiente de laboratório... afinal, o cerne das experiências científicas é a esterilização e charme estéril é uma contradição em termos.
Minha primeira impressão de Sally, em 2001, foi que o clichê, mesmo propositado, era demais e comprometia o todo. Agora não. O problema de Sally não é a infidelidade, mas o oposto. Ela é uma cortesã fiel a gêneros, com receio de se entregar a outros braços e preferindo deitar-se com homens conhecidos e inofensivos. Faria bem a ela largar mão dos sujeitos que envergam jalecos brancos e chafurdar um pouco na lama, andar de ônibus, ser bolinada por peões de obra, estivadores e operários.
Afinal, trata-se de uma garota de programa.

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Sally

por Jorge Candeias

Edições Colibri

2002

Octávio Aragão editou:

 

Intempol

Ano-Luz (Brasil)

2000

(leia a crítica de Marcello Simão Branco)

(leia a crítica de Jorge Candeias)

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