R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Caso Subuel Mantil

por Jorge Candeias

conto publicado em 09.08.2002

republicado em 04.08.2003

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- Ai, meu Deuuuus!...
As pessoas que se encontravam no átrio da TEP sobressaltaram-se com o berro que lhes chegou da casa de banho. Uma funcionária saiu de detrás de um balcão e foi ver o que se passava, espreitando a medo pela porta entreaberta, enquanto ia perguntando uma e outra vez: "Está tudo bem por aí?"
Parece que não estava, porque assim que a funcionária desapareceu por completo da vista do pequeno semicírculo de pessoas que se fora entretanto aglomerando em torno da porta da casa de banho dos homens, em pleno átrio principal da sede das Transmissões Etéreas Portuguesas, voltou a ouvir-se o mesmo urro
- Ai, meu Deuuuus!...
e a funcionária reapareceu, voando, e indo-se esmagar de encontro ao segurança Afonso, pelo qual, aliás, vinha desenvolvendo um fraquinho há já algum tempo. Rebolaram os dois pelo chão enquanto a porta da casa de banho se fechava com estrondo e se fundia com a parede com um som de nozes a partir-se. A funcionária desmaiou, não se sabe bem se de susto pelo voo, se por estar finalmente peito com peito com o segurança Afonso. Este, por sua vez, adquiriu um olho negro e um grande galo na nuca, troféus que andou mais tarde a mostrar, orgulhoso, a amigos e conhecidos, dizendo: "isto foi no dia em que o Mago Subuel Mantil se fechou na casa de banho da TEP. Eu estava lá, e fui a primeira vítima!"
-oOo-
Boa tarde. Bem-vindos ao primeiro jornal.
Eram doze e trinta quando um indivíduo não identificado invadiu o átrio principal das nossas instalações em Lisboa (panorâmica do átrio), barricando-se em seguida numa casa de banho, fazendo dois feridos ligeiros, ambos funcionários da empresa (imagens de um segurança combalido tentando reanimar uma funcionária). Não são ainda conhecidos os motivos ou as reivindicações do indivíduo. A polícia já se encontra no local (uma patrulha entrando num edifício em passo de corrida) e, através da análise das gravações dos Olhos de Cheshire que os investigadores conseguiram introduzir na casa de banho, e pela dificuldade que tiveram em recuperá-los (imagens de fraca qualidade com a etiqueta "Olho de Cheshire 3", mostrando um homem careca, baixinho e mal vestido, a fazer desaparecer um grande olho de íris azul que flutuava no ar à sua frente), chegou-se à conclusão que se trata de um mago de algum poder, com cerca de 45 anos de idade. Estão neste momento a caminho da nossa sede equipas do Departamento Teleológico da Polícia Judiciária e do Sindicato dos Magos e Afins do Sul e Ilhas, que vão tentar identificar e comunicar com o indivíduo (outra panorâmica do átrio).
Voltaremos a esta notícia assim que os desenvolvimentos o justifiquem.
-oOo-
Sim, sobrevivi ao desaparecimento de Lisboanova por uma unha negra e por pura sorte. Sim, ia a caminho de Phobos quando Deimos se esfumou e se transformou no Anel Deimiano. Sim, sou um mago de nível 3 especializado em telecinese. E não, porra, não, caraças, não, com mil diabos, não sei quem vem a ser esse tipo, esse Mantil ou Senil ou Funil ou lá como o cabrão se chama!
Desculpe o palavrão... tou nervoso... não tou habituado a tanta pergunta...
-oOo-
Zé Afonso Tiago, tenente da Brigada de Taumaturgia e Fenómenos Paranormais da Polícia Judiciária, também conhecida como "departamento teleológico", chegou ao local às treze horas e sete minutos. Colocou-se, como manda o regulamento, ao lado da porta da casa de banho, protegido por uma equipa de três agentes de menor patente, e tratou de enviar uma sonda etérea através da parede para poder comunicar com o indivíduo barricado. A primeira coisa que ouviu foi um berro
- Ai meu Deuuuuus!...
logo seguido de um guincho, do ruído de coisas cerâmicas a partir-se e, no meio duma cacofonia de nozes em explosão, da abertura de uma íris na porta, através da qual voou uma sanita ainda com restos de papel higiénico presos no cano. Ao mesmo tempo que a sanita se estampava com grande estrago contra a parede do outro lado do corredor, a íris voltava a fechar-se e Zé Afonso Tiago apanhava com a sonda etérea em cheio na testa. Sorte sua que tinha a cabeça dura, e que a tinha protegido antecipadamente com um feitiço durex último modelo, exclusivo das forças de segurança. Mesmo assim, o impulso foi tamanho que não evitou o trambolhão.
Combalido, Tiago, também conhecido nos meios taumatúrgicos como Fonsin Tiagonal, levantou-se, sacudindo as calças num gesto automático, e activou um feitiço de check-up. Estava tudo bem, à parte uma amolgadela por cima da sobrancelha esquerda que se transformava a pouco e pouco em inchaço, e Tiago acalmou-se. Perguntava a si mesmo se não seria caso de avisar a central, quando apareceu nova sonda etérea, esta de formato não-padronizado, na porta da casa de banho. Enquanto Tiago abria lentamente a boca, espantado, da ponta da sonda surgia um olho pestanudo que se pôs a olhá-lo fixamente.
- Ai meu Deuuuus!... - ouviu-se de novo, agora num tom um pouco mais grave e, ao contrário do que já vinha a tornar-se hábito, desta feita a voz continuou a falar, depois de o olho piscar duas vezes - Eu faço uma desgraça! Ai faço! Ai faço!
- Calm... - começou Tiago a balbuciar, sendo interrompido de imediato com outro
- Ai meu Deuuuus!...
e logo em seguida:
- Você é o Tiagonal, não é? Eu faço uma desgraça! Eu faço uma desgraça se não me deixarem falar imediatamente com o Rirangel! Ai meu Deuuuus!...
O Rirangel, isto é, o Mago Zezanzin Rirangel, ou seja, o Dr. João Silva Botelho, era o presidente em exercício da TEP, cargo que acumulava com o de primeiro secretário da toda-poderosa Guilda dos Feiticeiros. Claro que não ia assim, sem mais aquelas, falar com um palerma qualquer que se tivesse emboscado numa casa de banho pública, nem que a dita casa de banho se situasse 69 andares abaixo do local onde ele nesse preciso momento se divertia com um charuto e uma secretária jovem e ambiciosa.
-oOo-
(imagem do pivot) Um indivíduo ainda não identificado encontra-se neste momento barricado nas instalações da TEP. Trata-se aparentemente de um mago de grande poder, que já terá feito vários feridos (imagem de vassoura-pairadeira mostrando um corpo numa maca em voo rasante, a caminho duma ambulância) e terá exigido um resgate avultado e um encontro a sós com Silva Botelho, o director daquela estação de etervisão (imagem de arquivo de Silva Botelho a bocejar). Infelizmente, prosseguindo a sua política de concorrência desleal (imagem do pivot, com o bocejante Silva Botelho num quadro a um canto) e procurando assegurar-se do exclusivo da história, a TEP impediu a entrada da nossa equipa de reportagem nas suas instalações, para o que contou com a ajuda da polícia (imagem de um cordão policial). É lamentável este comportamento da estação pública, que nos impede de fornecer a informação mais completa ao nosso público, e estranha-se ainda mais a colaboração das forças de segurança.
Temos, entretanto, em estúdio, um painel de comentadores (imagem do painel) que...
-oOo-

Colossal Piramidal era gozado por toda a gente por causa do teleonome que escolhera quando ingressou na Academia. Ele tentava convencer os outros de que o nome se lhe impusera, mas ninguém acreditava. E, se isso não fazia grande diferença quando quem gozava com ele eram os colegas, já quando se tratava de clientes, a coisa fiava mais fino.
Ainda tentou ganhar a vida honestamente na Terra, mas a sua magreza extrema não escondia que passava fome, apesar de todos os feitiços fotossintéticos que lhe haviam colorido a pele de um verde vivo, especialmente na cara e nas mãos. Por isso, quando a Companha de Enfeitiçamento Terraformativo de Marte abriu o recrutamento de pessoal especializado, nem pensou duas vezes e fez as malas.
Horas depois estava em Lisboanova.
-oOo-
- Mas o que é que ele quer?
- Não sabemos, dr. Rirangel. O homem diz que quer falar consigo e que não sai da casa de banho enquanto não o fizer.
- Que disparate! Digam-lhe que estou ocupado e não voltem a incomodar-me com esse género de irrelevâncias!

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O Caso Subuel Mantil

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