R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Máquina Voadora

por Bráulio Tavares

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 22.08.2003

Ao contrário do que possa pensar quem tem os olhos virados exclusivamente, ou quase, para as colecções de FC, o brasileiro Bráulio Tavares não publicou, em Portugal, só na colecção de FC da Caminho, nem se limitou a editar entre nós as colectâneas dos seus contos. Também produziu e editou um romance, que os responsáveis da editora resolveram colocar na colecção "Uma Terra sem Amos", colecção fundamentalmente mainstream onde se editam obras consideradas "mais literárias" do que a FC.
Mas curiosamente, A Máquina Voadora está mais próxima da ficção científica do que algumas das obras incluídas na colecção de ficção científica. Refiro-me, entre outros, a Universal, Limitada, de Isabel Cristina Pires, ou aos livros de Terry Pratchett (As Três Bruxas e Mort).
Este romance de Bráulio Tavares, segundo o seu subtítulo, conta a "história do sapateiro Gamboa, e da sua maravilhosa máquina de voar". Bráulio regressa a um cenário que já tinha visitado pelo menos uma vez, quando contou a História de Maldun, o Mensageiro (conto incluído n'A Espinha Dorsal da Memória): a Serra do Calabouço, local inventado situado algures entre o sul de Portugal e a Andaluzia, na época em que cristãos se cruzavam com muçulmanos nesta zona do mundo.
A história que nos é contada é, de facto, a do sapateiro Ramiro Gamboa, um homem que usa a sua arte para sobreviver mas tem os olhos postos muito longe dos seus horizontes rurais, consumidos por uma curiosidade insaciável que poucos conseguem compreender e que lhe condiciona uma parte significativa da vida. Gamboa sente-se fora do seu tempo, e tem visões de lugares muito diferentes, mas talvez não muito distantes.
A propósito da história de Gamboa, surgem também histórias protagonizadas por outros membros da família, especialmente o filho, Nuno, e sua mulher, Damiana, e o pai desta, Eleazar, um homem estranho que é, em muitos aspectos, semelhante a Ramiro, e o pai deste, Jofre de seu nome.
Cruza-se também a história de Ramiro Gamboa com a história da Serra do Calabouço e da cidade de Campinoigandres, também ela inventada, onde habita um grupo de nobres muçulmanos, núcleo central de uma espécie de sociedade secreta de protectores do conhecimento: os Pensadores.
Acabamos por descobrir que o conhecimento protegido pelos Pensadores, tem em comum com aquele que Ramiro Gamboa persegue o facto de não pertencer ao tempo de ambos. Tudo acaba por desembocar na Máquina Voadora, que dá nome ao romance. Esta máquina que nunca é descrita com clareza, inventada e construída por Jofre, sugere-se semelhante aos esboços de Da Vinci, ou até aos primeiros veículos voadores dos primórdios da aviação, no início do século passado.
Viagens no tempo? Teria Jofre vindo do futuro? Ou teriam vindo do futuro os documentos em que ele se baseou para a concepção da sua máquina?
Não se percebe bem. O romance é ambíguo, e esse facto é causa de boa parte do seu fascínio.
De resto, trata-se de uma história muito bem construída e escrita, que em subtexto acaba por debruçar-se sobre a natureza do conhecimento, mostrando como ele é precioso, como encerra jóias, e como pode ser também perigoso quando utilizado de forma inadequada. Uma história que prende o leitor aos mistérios que cria e vai desvendando, a pouco e pouco, nunca chegando, no entanto, a revelá-los por completo, deixando em vez disso que quem lê tire as suas próprias conclusões a partir das pistas que são deixadas espalhadas ao longo das quase 250 páginas do livro. No ambiente e no tema, faz um pouco lembrar o Memorial do Convento, de José Saramago, embora a concretização seja muito diferente da deste êxito maior do nosso Nobel.
Uma coisa, entretanto, é certa: Bráulio Tavares é claramente um dos melhores escritores ligados à ficção científica de língua portuguesa, e este seu livro, sem ser propriamente ficção científica, é, talvez, o seu melhor livro. Quase, quase nas cinco estrelas.

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A Máquina Voadora

por Bráulio Tavares

Editorial Caminho

colecção Uma Terra Sem Amos, nº 82

1997

Críticas a outras obras de Bráulio Tavares

A Espinha Dorsal da Memória

Mundo Fantasmo

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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