R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Millennium

por John Varley

uma crítica de Eduardo Torres

publicada em 18.04.2005

O filme Millennium, exibido em 1989 com direção de Michael Anderson e estrelado por Kris Kristofferson e Charyl Ladd, mostra uma interessante trama de viagem no tempo, mas a opinião geral sobre ele — com a qual concordo — é que não tem uma densidade suficiente para que possa ser listado entre os melhores do gênero.
Embora o roteiro de Millennium tenha sido assinado por John Varley, é no livro homônimo de 1983 e, segundo muita gente boa, em Air Raid, o conto de 1977 que o inspirou, que Varley realmente criou obras marcantes de viagem no tempo.
Varley escreveu Millennium como uma série de testemunhos, como se fossem relatórios, alternadamente de autoria de Louise Baltimore, uma linda viajante do tempo de um futuro distante, e de Bill Smith, um investigador de acidentes aéreos.
A trama é justamente precipitada por um grande acidente envolvendo um DC-10 e um 747 lotados, sem sobreviventes. Descobrimos que, pouco antes do impacto fatal, agentes do futuro entram nos dois aviões e transportam todos os seus passageiros em segurança para seu próprio tempo, substituindo-os por corpos substitutos. Por quê? Vamos descobrindo aos poucos enquanto montamos o quebra-cabeças cuidadosamente apresentado pelo autor.
Varley despeja nos leitores logo nas primeiras páginas, através dos relatos de Louise, uma avalanche de fatos fantásticos apresentados como se fossem coisas prosaicas e cotidianas, num tom quase blasé. Isso cria uma sensação atraentemente perturbadora no leitor.
Descobrimos que, a partir de um processo de degradação ecológica intensificado a partir do século 20, o mundo e a própria humanidade estão decadentes e moribundos no ano 50.000. As pessoas estão sofrendo de degenerescência genética crônica e os mais saudáveis tem mais de metade de seu corpo formado por próteses e órgãos artificiais. A maioria da já reduzida população simplesmente vegeta (e são chamadas zangões), mas uma minoria (que chama a si mesma ironicamente de zumbis) ainda tem iniciativa e tenta, em desespero de causa, dar uma segunda chance à humanidade. Através de um Portal do Tempo, começam a seqüestrar seres humanos saudáveis do passado para formarem um novo Gênesis. Essas pessoas são cuidadosamente escolhidas entre aquelas que com certeza morrerão (morreram) num determinado momento conhecido, sendo removidas de seu tempo pouco antes de suas mortes, de modo que sua supressão não pudesse causar alterações da História (num sistema também utilizado em safáris pré-históricos no conto Som de Trovão de Ray Bradbury e no filme Freejack de 1992, baseado no romance Immortality Inc. de Robert Sheckley).
Louise, apesar de exteriormente linda, é também uma moribunda, cheia de órgãos artificiais, incluindo a pele sintética. Seu melhor amigo e objeto sexual é o robô Sherman, e os diálogos entre esses dois personagens são um dos pontos altos do livro.
Aliás, Millennium é um tour de force estilístico de Varley, que dedicou especial atenção aos diálogos cortantes como navalhas e às narrativas secas e envolventes de Louise e Bill, que vão crescendo tridimensionalmente diante dos olhos do leitor ao longo do livro.
Varley criou em Millennium uma regra do jogo própria para tratar a viagem no tempo e os paradoxos temporais. Seu Portal do Tempo permitia uma visualização do passado, desde que naquele passado não houvesse em operação um Portal do Tempo aberto a partir de um futuro à frente daqueles que queriam observar aquele momento da linha temporal. Isso era chamado de "censura temporal". Vastas "áreas" do passado estavam proibidas de visualização devido ao fato que, no futuro, seriam visitadas, mas cuja visita já estava desde sempre registrada no Continuum. Outra restrição do Portal era que só podia ser aberto num único momento. Não podia-se ter dois Portais do Tempo abertos simultaneamente. Isso implicava que as visitas a um determinado tempo eram únicas. Nunca mais aquele período poderia ser visitado. E não eram possíveis viagens para o futuro absoluto. Os viajantes do tempo tinham que voltar para o mesmo Portal deixado aberto em seu "presente" durante suas missões.
Um problema para os zumbis surge quando deixam uma arma do futuro num dos aviões durante a missão de salvamento transtemporal dos passageiros. Esse tipo de anacronismo poderia dar ensejo a um paradoxo temporal (essas peças do futuro deixadas no passado por acidentes eram chamadas twonkies). E Louise é escalada para uma complicada missão de resgate, que envolve Bill e diversos paradoxos, inclusive uma tentativa de Louise de alterar eventos da qual ela própria participou, o que precipitaria um desconcertante paradoxo mnemônico, pois ela se perguntava o que aconteceria com suas memórias se tivesse sucesso. Provocantemente Varley nos deixa na dúvida, pois no final Louise não é bem sucedida.
Outro paradoxo interessante, dessa vez de loop de objeto, é descrito por Varley com respeito às fitas de gravação das conversas dos pilotos pouco antes dos acidentes. Às vezes a atividade dos agentes do futuro eram descobertas e os pilotos diziam coisas que poderiam revelar sua existência através das fitas, quando fossem ouvidas pelos investigadores. Esse problema era contornado pela observação transtemporal prévia e gravação da reprodução da fita do desastre antes da missão. Se houvesse problema, simplesmente passava-se a fita e gravava-se sobre a fita durante a missão a gravação anteriormente gravada no futuro. Quer dizer, nunca as vozes originais dos pilotos disseram aquelas palavras, que agora sempre foram gravadas a partir de gravações delas mesmas!
Varley também arbitra um paradoxo envolvendo a propagação das alterações do passado ao longo do Continuum. Essa propagação causava um "rearranjo" da linha de tempo desde o ponto no passado onde a História foi alterada até o futuro de onde partiu a missão alteradora e prosseguindo infinitamente na linha do tempo. Em eventos menores esse rearranjo era insignificante, mas em grandes alterações as mudanças poderiam ser radicais e chamadas de "tempomotos". Nesse caso o futuro mudaria tanto que nada restaria das pessoas que criaram e usavam o Portal para dar uma nova chance para a humanidade. Seria, literalmente, o fim. O detalhe era que isso só acontecia depois que o evento se "propagava" do ponto de perturbação no passado até o Portal de onde se originou a alteração. Só nesse momento, instantaneamente, toda a linha do tempo seria "rearranjada para baixo e para cima" do momento onde estava o Portal. E Varley nos diz que, no caso do paradoxo criado pelo twonky, a "velocidade de propagação" seria de duzentos anos por hora (o que daria cerca de dez dias para se reverter a situação). No filme os "tempomotos" foram descritos como se fossem mesmo terremotos, com tremores e explosões, o que ficou algo inverossímel, e mesmo ridículo.
Descobrimos depois que a trama envolve outro twonky deixado em 1955 (o livro se passa em 1983), e vemos Bill e um cientista que descobrira as missões do Portal serem levados por Louise para o futuro, onde há o desfecho da trama e ficamos de queixo caído com um final surpreendente, iconoclasta — até mesmo blasfemo — descrito por Varley (com direito a mais alguns paradoxos temporais interessantes).
Você fecha a última página do livro e se sente como se tivesse sido atingido por uma pancada na cabeça. Não sabe se quer dar um soco com raiva ou um tapinha de cumprimento nas costas de Varley, mas tem certeza que leu uma das melhores e bem escritas histórias de viagem no tempo de sua vida.
Como bônus adicional, Varley nos brinda com o requinte de estilo de nomear cada capítulo com o título de uma famosa obra literaria de viagem no tempo. Assim temos, por exemplo, o primeiro capítulo chamado Som de Trovão, homenageando o clássico de Bradbury, o quarto batizado de A Máquina do Tempo, lembrando o livro de H.G.Wells, e o sexto com o título de Os Guardiães do Tempo, citando Poul Anderson. Para o chocante capítulo final Varley escolheu apropriadamente O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov. E rendeu respeitos dessa forma ao longo do livro a outros autores de ficção científica como Robert A. Heinlein, Garry Kilworth, P. Schuyler Miller, William Tenn, Ray Cummings, Michael Moorcock, John Brunner, Brian Aldiss, Mack Reynolds, Robert Silverberg, Henry Kuttner, L. Sprague de Camp, William Hodgson e Arthur C. Clarke. E cada capítulo tem título que de fato se reflete em seu conteúdo. Varley ainda teve — sem ironia — tempo para batizar um capítulo como As Time Goes By, a imortal canção composta por Herman Hupfeld para o filme Casablanca (embora nesse caso Varley tenha cometido um pequeno erro nas "Notas do Autor", quando diz que essa era a canção que Rick (Humphrey Bogart) teria pedido a Sam (Dooley Wilson) para tocar — na verdade no filme é Ilsa (Ingrid Bergman) quem faz o pedido, e simplesmente dizendo "Toque, Sam, toque As Time Goes By", e não "Toque outra vez, Sam", como muita gente pensa). O próprio título do livro Millennium homenageia a obra homônima de Ben Bova, embora nesse caso o livro citado nada tenha a ver com viagem no tempo.
Millennium não pode faltar na estante daqueles que gostam de histórias bem escritas de viagem no tempo. E com certeza será apreciado, por sua qualidade literária, mesmo por aqueles não afeitos ou afeiçoados ao tema.

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Millennium

por John Varley

Ace Books (EUA)

1999

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