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Solaris: O livro e os filmes

por Eduardo Torres

publicado em 16.07.2006

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O homem partiu à descoberta de outros mundos, de outras civilizações, sem ter inteiramente explorado seus próprios abismos, seu labirinto de corredores escuros e câmaras secretas.
- Solaris, o livro
 
O Homem foi criado pela Natureza para explorá-la. Quando alcança a Verdade, está fadado ao Conhecimento. Todo o resto é besteira.
- Solaris, o filme
 
— Quem sou eu então? — Uma marionete. — E você não é? Ou talvez você seja minha marionete. Mas como todas as marionetes, você pensa que é realmente humano. Esse é o sonho de todas as marionetes.
- Solaris, a refilmagem
 
 
Versões literárias e cinematográficas de uma mesma obra de ficção científica em geral são conflitantes, com infindáveis debates sobre a possível perda da essência do livro em sua transposição para a tela e a eventual necessidade de se mudar a história devido às grandes diferenças entre os dois meios.
Em poucas ocasiões a divulgação de um trabalho de ficção científica nesses dois formatos adquire características de sinergia, onde o somatório das duas formas excede a soma de cada uma delas isoladamente.
Resgatando três raros exemplos em que isso ocorreu, 2001, Uma Odisséia no Espaco de 1968 seria o mais famoso e, nesse caso, o romance de Arthur C. Clarke, publicado pouco antes do lançamento do filme, sequer existiria se não fosse o roteiro escrito a quatro mãos por Clarke e Stanley Kubrick, no qual se baseou (e com participação significativa das idéias desse último, como honestamente reconheceu Sir Arthur em Mundos Perdidos de 2001). O segundo seria Blade Runner de 1982, o hoje cult-movie de Ridley Scott, baseado no romance Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas? de 1968, que fez uma vasta legião de leitores (re)descobrirem Philip K. Dick, talvez o mais filmado autor de FC de todos os tempos. Além disso, para muitos críticos e leitores/espectadores (entre os quais me incluo), esse seria um dos poucos filmes de FC que superaram os livros em que se basearam.
O terceiro seria Solaris.
Stanislaw Lem tinha 40 anos quando escreveu e publicou Solaris em 1961 na sua Polônia natal. Na época já era um escritor conhecido em seu país, embora tivesse se formado em medicina e trabalhado numa instituição estatal de pesquisa, escrevendo seus primeiros livros nas horas vagas. Sua visão pessimista da humanidade freqüentemente lhe trouxe problemas com o governo socialista, mas conseguiu se firmar como um dos mais famosos escritores de ficção científica do então Segundo Mundo, pois teve suas obras logo traduzidas para o russo e diversas línguas dos países sob a órbita política da antiga União Soviética.
Mas permanecia pouco conhecido no Ocidente, até que chegaram as notícias no início dos anos 70 de que o já prestigiado cineasta russo Andrei Tarkovsky estava dirigindo um filme de ficção científica que seria a 'resposta soviética a 2001', baseado num livro de um certo escritor polonês.
Só a partir de então é que, pela primeira vez, Lem foi traduzido para o inglês, com uma pioneira edição britânica de Solaris em 1970. Embora houvesse uma edição francesa anterior (na qual se baseou o texto em inglês), só a partir dessa publicação Solaris e Lem passaram a ter repercussão entre leitores e editores anglofônicos de FC, que dominavam (como ainda dominam) o mercado mundial do gênero.
E como o Brasil na época estava bem mais antenado do que hoje com a ficção científica internacional, logo no ano seguinte, em 1971, era publicada em nosso país a primeira tradução do mundo de Solaris em português, pela Editora Sabiá, em texto vertido pelo famoso (segundo alguns, pela qualidade dos textos, infame) José Sanz.
Em 1974, quando do lançamento do filme Solaris de Tarkovsky no Brasil, os exemplares encalhados da edição de 1971 voltaram em massa às livrarias e rapidamente se esgotaram. Eu, na época adolescente e ávido leitor de FC, tive o privilégio de ser um desses felizes compradores e até hoje guardo carinhosamente meu exemplar, já com as bordas das páginas amareladas (uma segunda publicação brasileira só surgiria treze anos depois, em 1984, pela Editora Francisco Alves, em seqüência à primeira edição lusa de 1983 pela Editora Europa-América).
Essa foi uma das grandes sinergias que o filme Solaris de 1972 ocasionou em sua associação com o livro homônimo escrito nove anos antes. Lem criou uma história instigante para o filme e o filme tornou Lem e sua obra conhecidos em todo o mundo. A outra foi que as duas obras se complementaram muito bem, a ponto de, na memória intelectual de muitos leitores/espectadores (entre os quais me incluo mais uma vez), Solaris ser como um continuum entre as duas mídias.
Trinta anos depois, em 2002, uma refilmagem do agora clássico (segundo alguns, cult) filme de Tarkovsky, produzida por James (Titanic) Cameron e dirigida por Steven (Erin Brockovich) Soderberg reacendeu o interesse por essa vigorosa obra de FC.
Os dois filmes Solaris são bem diferentes entre si, mas, cada um a seu modo, são fiéis à letra e ao espírito do romance, embora sem subserviência estéril ao texto, e sim recriando-o num outro meio de comunicação que tem linguagem própria, e até ousando criativamente nas cores vindas da paleta de Lem.
Solaris, o livro, tem como cenário uma estação espacial em órbita de um planeta distante. O planeta Solaris é um grande oceano, que é estudado há quase cem anos, e que se comporta como se fosse um único gigantesco ser. Inteligente? Consciente? Apenas uma grande complexidade orgânica? A Solarística (especialidade científica criada em torno da busca para compreender Solaris) ainda não sabe. Pior: Todo o conhecimento acumulado em décadas não parece ter permitido qualquer avanço em decifrar o enigma de Solaris desde o dia de sua primeira descoberta. O místico 'Contato', o coroamento final da Solarística, é um sonho cada vez mais distante. A Estação Solaris agora só é ocupada por três cientistas, mas a comunidade solarista hesita em fechá-la definitivamente. Seria o reconhecimento do seu fracasso. Um psicólogo é enviado da Terra para uma inspeção.
Esse é o cenário onde se desenrola o drama criado por Lem. Kris Kelvin, o psicólogo, logo percebe o motivo do comportamento estranho dos cientistas, um dos quais, seu amigo Gibarian, se suicidou poucos dias antes de sua chegada: 'Visitantes' aparecem para cada um deles, inclusive Kris. São exatamente como as imagens dessas pessoas estão nas mentes dos cientistas. E essas 'visitas' desencadeiam um turbilhão de emoções e angústias.
Uma das coisas mais impressionantes no livro Solaris é como Lem cria uma sensação de maravilhamento ao tecer de modo arrepiantemente verossímil a Solarística, a 'geografia' de Solaris, e a estrutura física dos 'visitantes'. As prolixas referências às obras científicas da Solarística (que ressoam as resenhas de livros imaginários feitas por Jorge Luis Borges), tão criticadas por alguns leitores menos habituados à FC de maior densidade, são justamente o rito de passagem ao universo criado por Lem. As 'digressões' de Lem têm ainda a função de ditar o ritmo da leitura, fazendo-nos equilibrar pausas meditativas com momentos de ação e tensão. A descoberta de que Harey, a cópia da ex-mulher de Kris, era na verdade formada por neutrinos organizados de modo a imitarem exatamente a estrutura molecular de um ser humano é assustadora, pois implicava que Solaris podia duplicar corpo e mente humanos de modo que nós próprios somos incapazes. Ainda hoje me arrepio quando leio esse trecho.
No entanto, o próprio Lem, na voz de Snaut, mostra como nem isso seria um verdadeiro 'Contato', ao lembrar que, mesmo se pudéssemos recriar tecnologicamente de modo perfeito as complexas formas sintetizadas pelo oceano, isso não implicaria que compreendêssemos sua verdadeira natureza.
A leitura da edição brasileira de Solaris tem alguns solavancos devido à tradução algo confusa de Sanz. Algumas passagens parecem nitidamente truncadas e até meio incompreensíveis, mas com boa vontade e uma versão em inglês ao lado, podemos minimizar os problemas.
Solaris, em suma, provoca o leitor a refletir sobre o fato de que no fundo não procuramos novos mundos, mas sim espelhos do nosso. Convida-nos a pensar que a verdadeira busca do conhecimento é tentar conhecer verdadeiramente a nós próprios. A idéia central de Solaris é que dentro de cada homem há um oceano de complexidades muito maior que o próprio Solaris, e que mais desconhecido que o ser-oceano é o próprio Homem.
O filme Solaris de Tarkovsky recria de modo inspirado a história de Lem. Diferente do livro, dedica uma longa introdução para situar melhor no espectador a missão de Kelvin, de modo a obter uma sensação de suspense desde antes de sua chegada à estação. O ritmo da 'leitura' no filme é obtido não pelas detalhadas descrições sobre Solaris, inviáveis nesse meio, mas pelas longas tomadas, pela montagem e, principalmente, pela música de Bach (nesse ponto numa inspiração artística semelhante à de Kubrick em 2001). Logo no início há uma polêmica longa seqüência de um carro percorrendo autopistas ao entardecer até que a noite sobrevém, mas essas cenas parecem ter a mesma função das descrições detalhadas de Lem no livro: Dirigir nosso ritmo de 'apreciação' como um competente maestro. E, ao apreciar a cena final dessa seqüência, vista do alto à noite, de um emaranhado de pistas se entrecruzando e com milhares de carros correndo por elas como glóbulos vermelhos em artérias, temos a sensação de que todo o conjunto tem vida própria, como correntes de um grande oceano, fazendo-nos pensar em perturbadoras analogias com o oceano vivo com o qual em breve nos depararíamos.
Tarkovsky concluiu a direção de Solaris exatamente com a mesma idade em que Lem terminou o livro. Na época o diretor já tinha prestígio fora da União Soviética, desde que ganhou o Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza em 1962 com A Infância de Ivan.
Em Solaris, o roteiro de Tarkovsky e Fridick Gorenshtein cria uma interessante ligação entre a seqüência inicial do filme, com Kris à margem do lago da casa do seu velho pai, às cenas finais do protagonista na mesma casa e mesmo lago, dessa vez recriados na superfície de Solaris, como uma nova etapa de uma experiência cósmica que ecoa o monolito de 2001. Nesse ponto creio que foi um final mais rico que o próprio livro em termos de caminhos abertos à reflexão do leitor/espectador.

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